quinta-feira, 16 de maio de 2013

TRATADO DA CASTIDADE: III. DA MODÉSTIA DOS OLHOS




(SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO)

 III. DA MODÉSTIA DOS OLHOS

Quase todas as paixões que se revoltam contra nosso espírito têm sua origem na
liberdade desenfreada dos olhos, pois os olhares livres são os que despertam em nós, de
ordinário, as inclinações desregradas. "Fiz um contrato com meus olhos de não cogitar
sequer em uma virgem", diz Jó (Job 31, 1). Mas, por que diz ele de não pensar sequer
em uma virgem? Não parece que deveria dizer: Fiz um contrato com meus olhos de não
olhar sequer? Não, ele tem toda a razão de falar assim, porque o pensamento está
intimamente ligado ao olhar, não se podendo separar um do outro, e, para não ter maus
pensamentos, propôs-se esse santo homem nunca olhar para uma virgem.
Santo Agostinho diz: "Do olhar nasce o pensamento, e do pensamento a
concupiscência". Se Eva não tivesse olhado para o fruto proibido, não teria pecado; ela,
porém, achou gosto em contemplá-lo, parecendo-lhe bom e belo; apanhou-o então, e
fez-se culpada da desobediência.
Aqui vemos como o demônio nos tenta primeiramente a olhar, depois a desejar
e, finalmente, a consentir. Por isso nos assegura São Jerônimo que o demônio só
necessita de nosso começo: dá-se por satisfeito se lhe abrimos a metade da porta, pois
ele saberá conquistar a outra metade. Um olhar voluntário, lançado a uma pessoa do
outro sexo, acende uma faísca infernal que precipita a alma na perdição. "As primeiras
setas que ferem as almas castas, diz São Bernardo (De mod. ben. viv., serm. 23), e não
raro as matam, entram pelos olhos". Por causa dos olhos caiu Davi, esse homem
segundo o coração de Deus. Por causa dos olhos caiu Salomão, esse instrumento do
Espírito Santo. Por causa dos olhos, quantas almas não se perderam eternamente?
Vigie, pois, cada um sobre seus olhos, se não quiser chorar uma vez com
Jeremias: "Meus olhos me roubaram a vida" (Jer 3, 51); as afeições criminosas que
penetraram em meu coração por causa dos meus olhares, lhe deram a morte. São
Gregório diz (Mor. 1, 21, c. 2): "Se não reprimires os olhos, tornar-se-ão ganchos do
inferno, que a força nos arrastarão e nos obrigarão, por assim dizer, a pecar contra a
nossa vontade". "Quem contempla objeto perigoso, acrescenta o Santo, começa a querer
o que antes não queria". É também o que diz a Sagrada Escritura (Jdt 16, 11), quando
diz que a bela Judite escravizou a alma de Holofernes, apenas este a contemplou.
Sêneca diz que a cegueira é mui útil para a conservação da inocência. Seguindo
esta máxima, um filósofo pagão arrancou-se os olhos para guardar a castidade, como
nos refere Tertuliano. Isso, porém, não é lícito a nós, cristãos; se queremos conservar a
castidade, devemos, contudo, fazer-nos cegos por virtude, abstendo-nos de olhar o que
possa despertar em nós os maus pensamentos. "Não contemples a beleza alheia; disso
origina-se a concupiscência, que queima como o fogo" (Ecli 9, 8). À vista seguem-se as
imaginações pecaminosas, que acendem o fogo impuro.
São Francisco de Sales dizia: "Quem não quiser que o inimigo penetre na
fortaleza, deve conservar as portas fechadas". Por essa razão foram os Santos tão
cautelosos em seus olhares. Por temor de enxergarem inesperadamente qualquer objeto
perigoso, conservavam os olhos quase sempre baixos, e se abstinham de olhar coisas
inteiramente inocentes. São Bernardo, depois de um ano inteiro no noviciado, não sabia
ainda se o teto de sua cela era plano ou abobadado. Na igreja do convento havia três
janelas e ele não o sabia, porque conservara os olhos baixos. Evitavam os Santos, com
cautela maior ainda, pôr os olhos em pessoa de outro sexo. São Hugo, bispo, nunca
olhava para o rosto das mulheres com quem tinha de conversar. Santa Clara nunca
olhava para a face de um homem. Aconteceu uma vez que, levantando os olhos para a
Hóstia Sagrada, durante a Elevação, viu o rosto do sacerdote, com o que ficou
profundamente aflita.
Julgue-se agora quão grande é a imprudência e temeridade dos que, não
possuindo a virtude dum desses Santos, ousam passear suas vistas em todas as pessoas,
não exceptuando as de outro sexo, e querendo ainda ficar livre de tentações e do perigo
de pecar. São Gregório diz (Dial. 1.2, c. 2) que as tentações que levaram São Bento a
revolver-se sobre espinhos, provieram de um olhar imprudente sobre uma senhora. São
Jerônimo, achando-se na gruta de Belém, onde continuamente orava e macerava seu
corpo com as mais atrozes penitências, foi por longo tempo atormentado pela lembrança
das damas que vira tempos antes em Roma. Como, pois, poderemos ficar preservados
de tentações, quando nos expomos ao perigo, olhando e até fitando complacentemente
pessoas de outro sexo?
O que nos prejudica não é tanto o olhar casual como o premeditado, o mirar.
Razão porque Santo Agostinho diz (Reg. ad Serv. Dei, n. 6): "Se vossos olhos
casualmente caírem sobre uma pessoa, cuja vista vos pode ser prejudicial, guardai-vos,
ao menos, de fitá-la". E São Gregório diz: "Não é lícito contemplar ou extasiar-se com a
vista daquilo que não é lícito desejar, pois, ainda que expulsemos os maus pensamentos
que costumam seguir o olhar voluntário, deixam sempre uma mancha na alma". Tendo se
perguntado ao irmão Rogério, franciscano, dotado de uma pureza angélica, por que se
mostrava tão reservado em seus olhares, quando tratava com mulheres, respondeu: "Se
o homem foge à ocasião, Deus o protege; se se expõe a ela, Nosso Senhor o abandona e
facilmente cairá no pecado".
Suposto mesmo que a liberdade que se concede aos olhos não produzisse outros
males, impediria sempre o recolhimento da alma durante a oração; pois tudo o que
vimos e nos impressionou, apresenta-se aos olhos de nossa alma e nos causa uma
imensidade de distrações. Quem já tem recolhimento de espírito durante a oração, tome
muito cuidado para não se ver privado dessa graça dando liberdade a seus olhos.
Está fora de dúvida que um cristão que vive sem recolhimento de espírito não
pode praticar as virtudes cristãs da humildade, da paciência, da mortificação, como
deveria. Guardemo-nos, por isso, de olhares curiosos, e só olhemos para objetos que
elevam para Deus o nosso espírito. "Olhos baixos elevam o coração para o Céu", dizia
São Bernardo. São Gregório Nazianzeno (Ep. ad Diocl.) escreve: "Onde habita Cristo
com Seu amor, reina aí a modéstia". Com isso não quero, porém, dizer que nunca se
deva levantar os olhos ou considerar coisa alguma; pelo contrário, é até bom, às vezes,
olhar coisas que elevam nosso coração para Deus, como santas imagens, prados
floridos, etc, já que a beleza dessa criatura nos atrai à contemplação do Criador.
Deve-se notar também que a modéstia dos olhos é necessária não só para nosso
próprio bem, como para a edificação do próximo. Só Deus vê o nosso coração; os
homens vêem apenas nossas obras externas e, ou se edificam, ou se escandalizam com
elas. "Pelo rosto se conhece o homem", diz a Escritura (Ecli 19, 26), isto é, pelo exterior
se depreende o que é o homem interiormente. Todo cristão, por isso, deve ser o que era
São João Batista, conforme as palavras do Salvador (Jo 5, 35): "Uma lâmpada que arde
e ilumina". Interiormente deve arder em amor divino; exteriormente, alumiar, pela
modéstia, a todos os que o vêem. Também a nós se podem aplicar as palavras que São
Paulo dirigiu a seus discípulos (I Cor 4, 9): "Somos o espetáculo dos anjos e dos
homens". "A vossa modéstia seja conhecida de todos os homens" (Filip 4, 5).
Pessoas devotas são observadas pelos anjos e pelos homens, e, por isso, sua
modéstia deve ser notória a todos, do contrário, deverão dar rigorosas contas a Deus no
dia do Juízo. Observando a modéstia, edificamos sumamente os outros e os
estimulamos à prática da virtude.
É celebre o que se conta de São Francisco de Assis: Uma vez deixou ele o
convento junto a uma companheiro, dizendo que ia pregar; tendo dado uma volta pela
cidade com os olhos baixos, entrou novamente no convento. 'Mas quando farás o
sermão?', perguntou-lhe o companheiro. 'Já o fiz, respondeu-lhe o Santo, consistiu todo
no resguardo dos olhos, do que demos exemplo ao povo'.
Santo Ambrósio diz que a modéstia das pessoas virtuosas é uma exortação mui
poderosa ao coração dos mundanos. "Quão belo não seria se bastasse te apresentares em
público para fazeres bem aos outros!" (In ps. 118, s. 10). De São Bernardino de Sena se
conta que, mesmo antes de entrar para o convento, bastava só a sua presença para pôr
fim às conversas livres de seus companheiros; mal o avistavam, diziam uns para os
outros: Silêncio, Bernardino vem vindo; e então calavam-se ou começavam a falar de
outras coisas. Santo Efrém, segundo o testemunho de São Gregório de Nissa, era tão
modesto, que já a sua vista estimulava à devoção, e não se podia vê-lo sem se sentir
levado a se tornar melhor. Mais admirável ainda é o que nos refere Suvio, do santo
sacerdote e mártir Luciano: só por sua modéstia moveu muitos pagãos a abraçarem a
santa Fé. O imperador Mazimiano, que fora disso informado, temendo sentir a sua
influência e ser obrigado a converter-se, citou-o à sua presença, mas não quis vê-lo, e
sujeitou-o ao interrogatório ocultando-o a suas vistas por uma cortina estendida entre os
dois.
Nosso ideal mais perfeito de modéstia foi, porém, o nosso Divino Salvador
mesmo, pois, como nota um célebre autor, os Evangelistas dizem, várias vezes, que o
Redentor levantou os olhos em certas ocasiões, dando a entender, com isso, que tinha
ordinariamente os olhos baixos. Por isso exalta o Apóstolo a modéstia de seu Divino
Mestre, escrevendo a seus discípulos: "Rogo-vos pela mansidão e modéstia de Cristo"
(II Cor 10, 1).
Concluo com as palavras de São Basílio a seus monges: "Se quisermos que
nossa alma tenha suas vistas sempre postas no Céu, filhos queridos, conservemos
nossos olhos sempre voltados para a terra". De manhã, ao despertar, devemos já pedir,
com o Profeta: "Afastai meus olhos, Senhor, para que não vejam a vaidade" (Sl 118,
37).


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...