CAPÍTULO II
No palácio do bispo de Lacedogna
O dia de Pentecostes em 1740 foi para o nosso Geraldo um dos mais importantes e abençoados de toda a sua vida. Nessa festa, 25 de junho, estava ele ajoelhado na capela das Clarissas de Muro ante o bispo de Lacedogna, Cláudio Albani, que com autorização do bispo diocesano lhe ia administrar o sacramento da crisma. A piedosa criança correspondia até então, do modo mais perfeito, à graça batismal; a graça da confirmação penetrou, qual fogo devorador e divino, em sua alma e o Espírito Santo assenhore-ou-se totalmente de todos os movimentos do seu co-ração. Desde aquele instante tornou-se Geraldo, de modo todo especial, devotíssimo do divino Espírito Santo, devoção essa que durou até o fim da sua vida, podendo ele relatar mais tarde a seus confrades os mais belos traços a respeito dela. “Não passava um dia, ou antes nenhuma hora — assim reza literalmente uma relação — em que Geraldo não invocasse o Espírito Santo, o que mais acentuadamente se dava, quando necessitava de algum bom conselho ou quando tinha de dá-lo a outrem. Nos dias de Pentecostes, viam-no sempre tão jovial e de rosto tão corado como se não pudesse conter o júbilo que dele se apoderava interiormente. Os dias precedentes à festa, passava-os na mais rude mortificação, jejuando
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a pão e água, flagelando-se e praticando outras penitências semelhantes; preparava-se com tão extraordinário fervor, que dava a aparência de querer incendiar as almas tíbias com o fogo que o devorava.
Um outro efeito da Confirmação foi o desejo sempre mais ardente de se consagrar ao serviço de Deus na vida religiosa. Logo após a crisma, fez o santo um primeiro ensaio de entrar no convento, mas o projeto fracassou; o tempo, em que nos desígnios divinos ele deveria consumar o sacrifício, ainda não havia chegado.
Os padres capuchinhos tinham um pequeno convento nas proximidades de Muro. Era lá que Geraldo queria ingressar, pois que se sentia atraído pela simplicidade, humildade e recolhimento que lá reinavam. Esperava ser recebido com mais facilidade nesse convento por causa de um tio seu, que lá residia, o Pe. Boaventura, erudito e apreciado teólogo. Cheio de confiança apresentou ao guardião o desejo e o pedido de ser admitido no número dos noviços. O guardião porém não se pôde resolver a aceitar o rapaz nem a título de experiência; Geraldo era de constituição demasiado fraca para suportar os rigores da Ordem.
O santo teve que retirar-se profundamente entristecido por ver baldada a sua esperança de trabalhar na santificação de sua alma dentro do convento. Na despedida o tio, para consolá-lo, fez-lhe presente de uma roupa nova. O coração do jovem que mais pensava nas necessidades alheias do que nas próprias,
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não considerava aquele presente como consolação, a não ser porque o punha em condição de socorrer os outros. E de fato não tardou a apresentar-se-lhe um indigente. Mal fechara a porta do claustro na des-pedida, encontrou-se com um mendigo muito mal vestido a rogar-lhe esmola pelo amor de Deus. Não foi preciso mais porquanto o pedido era feito a uma alma compassiva que também sofria. Geraldo despiu depressa a roupa que o Pe. Boaventura lhe dera e entregou-a ao pobre. A coisa porém não permaneceu oculta, chegou aos ouvidos do Pe. Boaventura que não ficou nada contente com a prodigalidade do seu sobrinho; mandou-o chamar e repreendeu-o forte-mente. O jovem ouviu tudo calado mas não pôde dei-xar de, no fim, dizer uma palavra em sua defesa: “Meu tio, não vos irriteis comigo; vós não vistes a nu-dez daquele pobre de Jesus Cristo, a quem dei a roupa, estava mais necessitado do que eu; se o tivésseis visto, teríeis feito o mesmo que eu”.
Essa palavra que fazia lembrar o pobrezinho de Assis desarmou o Pe. Boaventura; o capuchinho calou-se edificado com os sentimentos nobres de seu sobrinho.
Se Geraldo não conseguiu começar na solidão do convento uma vida de abnegação própria e de sacrifício, achou para ela uma compensação no mundo. O bispo Albini de Lacedogna, que havia crismado Geraldo, era natural de Muro e andava à procura de algum conterrâneo seu para empregado de confiança — achou-o no nosso santo. Realmente
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o bispo Albini precisava de um empregado santo. Es-se prelado era de caráter altivo e de temperamento colérico, a ponto de se enfurecer por causas insignificantes; nesse estado maltratava seus súditos humilhando-os e exacerbando-os. Por esse motivo nenhum empregado lá permanecia por muito tempo. Quando se espalhou a notícia da proposta feita a Geraldo, amigos dele dissuadiram-no da aceitação, mostrando-lhe, que em sua simplicidade, ele estaria exposto necessariamente a maus tratos cotidianos. Geraldo porém sentia-se atraído a aceitar o emprego justamente por causa dos motivos, que os amigos julgavam próprios para o afastar; aceitou pois a pro-posta e passou de Muro a Lacedogna (1741) trocando a oficina de alfaiate pelo palácio do bispo.
Lá era ele a alma do trabalho doméstico; pronto para todo serviço, mostrava-se assíduo e zeloso pro-curando poupar a seu patrão qualquer motivo de queixa e acalmar os seus nervos enfraquecidos. Não o conseguiu de todo porque apesar do grande cuida-do e de toda a boa vontade não faltaram, diariamente, repreensões, censuras e humilhações. Embora o prelado estimasse sinceramente o seu piedoso em-pregado, cumulava-o de ordens molestas e ameaçava-o de expulsão por qualquer falta insignificante. Nessas ocasiões, Geraldo, sorridente sempre e de olhos baixos, esperava calado a cessação da tempestade — e continuava o seu trabalho, como se na-da houvesse sucedido. Nunca lhe passou pela mente a idéia de abandonar o seu patrão irascível. Quando
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alguém lhe perguntava, como era possível suportar os caprichos, as veleidades e o procedimento repulsivo de seu patrão, costumava desculpá-lo atribuindo tudo à sua própria inabilidade: “O sr. bispo me quer bem, dizia, e eu desejo ser seu empregado até a morte”.
Tal conduta bastava para convencer os moradores de Lacedogna, de que o novo empregado do bispo era um grande santo. Mas eles sabiam também que Geraldo levava vida mortificada e praticava as mais raras virtudes.
No palácio episcopal de Lacedogna, Geraldo levava a vida de um monge em seu claustro. Os exercícios de piedade, a que se habituara desde os seus mais tenros anos, foram exercidos sempre com maior fervor. Todas as manhãs ajoelhava-se aos degraus do altar para assistir a santa missa ou receber a sagrada comunhão; encontrando, durante o dia, alguns minutos livres, empregava-os na visita ao SS. Sacramento. Isso impressionava vivamente a todos, que exaltavam o piedoso jovem exclamando: “Ó Geraldo feliz — ele é um grande santo”. Muitos imitando-lhe os exemplos puseram-se a visitar muitas vezes ao dia o prisioneiro dos tabernáculos.
Quanto à alimentação, continuou Geraldo a ser extraordinariamente parco; bastavam-lhe uns legu-mes e um pedaço de pão seco; quando sobravam ricos pratos da mesa episcopal, dava-os aos pobres ou levava-os aos doentes, a quem amava como membros padecentes de Jesus. Durante a sua
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estada em Lacedogna, Geraldo passou sempre doente e atacado muitas vezes de dores físicas, por ele suportadas com a costumada paciência e resignação, pro-curando antes aumentá-las que diminuí-las. Um dia encontrou-se com o médico Lamorte. Estranhando a fraqueza de Geraldo, este deteve-o e perguntou-lhe como passava. “Muito bem”, respondeu Geraldo. O médico compreendeu que aquela resposta não era a expressão da verdade, porque pelas aparências, ele não podia achar-se tão bem; descobriu-lhe um pouco o peito para examiná-lo e verificou uma cadeia de ferro que tolhia ao jovem a respiração.
Em Lacedogna crescia dia a dia a consideração para com o santo, consideração que se converteu em veneração por um acontecimento presenciado por grande parte da população. O bispo saíra a passeio fora da cidade.
Geraldo, tendo de ir buscar água do poço público que ficava próximo, fechou a casa e levou a chave. Quando Geraldo se inclinou para haurir a água, a chave escorregou e caiu no poço. Por uns minutos o pobre empregado ficou atônito e sem fala a borda do poço: conhecia o seu patrão e sabia que ele haveria de encolerizar se, ao voltar, não pudesse entrar em casa. Geraldo porém não tardou a recuperar a calma; pediu socorro ao céu, correu à catedral em busca de uma pequena estátua do Menino Jesus, que se costumava expor à veneração pública nas festas de Natal. Os curiosos se agruparam junto ao poço, olhavam com admiração para o empregado do bispo, pois ignoravam o que ele iria fazer com a -
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conhecida estátua. Geraldo tomou uma das cordas do poço, amarrou na ponto o Menino e lançou-o ao fundo rezando em alta voz: “Ah, meu amável Menino, podeis restituir-me a chave, fazei que eu torne a a-chá-la para que meu amo não se zangue ao voltar para casa”. Todos olhavam ansiosos para a estátua, quando Geraldo, pouco depois, começou a puxá-la para cima; ficaram pasmos e Geraldo estremeceu de alegria diante da estátua que trazia nas mãos a chave, recompensando assim a confiança de seu servo. Em triunfo levou Geraldo à igreja a imagem do Meni-no Deus. A notícia desse acontecimento milagroso espalhou-se por toda a cidade e o poço recebeu o nome de Geraldo, nome esse que se conserva até hoje.
A 25 de junho de 1744 faleceu o bispo de Lacedogna. Geraldo, que três anos o servira fielmente, chorou como um filho a sua morte e repetiu muitas vezes: “Perdi o meu melhor amigo, o meu bispo amava-me de verdade”. A fé viva de Geraldo fê-lo esquecer todas as rudezas do caráter do seu patrão, enquanto que o amor que sempre lhe consagrara jamais desapareceu da sua memória e o fez pôr o bispo Albini no rol dos seus maiores benfeitores e amigos.
Após a morte do prelado, Geraldo voltou a sua terra natal na idade de 18 anos. A saudade do claustro, tornando-se dia a dia mais forte, impeliu-o nova-mente ao convento dos capuchinhos: a resposta po-rém foi outra vez negativa. Em Lacedogna, ele
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tornara-se, certamente, mais austero ainda consigo mesmo. Como a lividez do rosto e a macilência de todo o corpo não recomendavam o jovem, não foi aceito por doente e demasiado fraco para a vida do claustro. Desconsolado pelo fracasso dos seus planos, porém não desanimado, submeteu-se o Servo de Deus aos desígnios da Providência e voltou à alfaiataria em sua terra. Largo espaço de tempo trabalhou sob a direção do mestre Vito Mennona; só pelo fim do ano de 1745 é que começou a trabalhar independente na casa de sua mãe.
Na oficina de Mennona tudo lhe correu às mil maravilhas; era querido como um filho da casa e venerado como um santo. Embora fosse já conhecida a sua vida de milagres, a estima que lhe consagravam crescia sempre mais pelas novas manifestações de sua vida santa e privilegiada. Madame Mennona foi uma vez testemunha da eficácia da oração do servo de Deus. A um quarto de hora da cidade corre o rio-zinho Maffeo, para onde se dirigia a mencionada senhora em companhia de Geraldo para a lavagem da roupa; à tarde uma chuva forte interrompeu o trabalho, obrigando Geraldo e a senhora a refugiar-se de-baixo de um rancho de palha. Como a chuva não cessasse e novas nuvens escurecessem o céu, a senhora, não podendo voltar para casa, começou a queixar-se e a derramar lágrimas afligindo não pouco o bom coração de Geraldo. Inspirado pela fé o servo de Deus sai do rancho, levanta seus braços para o céu e com confiança filial diz ao Senhor: “Que
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faremos para voltar para casa?” Mal acabara de pronunciar essas palavras, cessou a chuva e as nuvens dissiparam-se, o céu clareou e Madame Mennona e Geraldo puderam regressar.
O velho Mennona, muitos anos mais tarde, falava ainda com entusiasmo do seu piedoso companheiro de trabalho, enaltecendo sempre a sua obediência, mansidão e caridade com os indigentes, mormente com as almas do purgatório. No tempo em que o jovem Geraldo já era irmão leigo da Congregação, foi Mennona várias vezes a Caposele edificar-se com sua santa vida, ouvir de seus lábios animação e conselhos e recomendar-se às suas fervorosas e santas orações.
TRECHO RETIRADO DO :
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